TÁR (2022)

Esse Eu Vi
3 min readJan 27, 2023

--

O rigor artístico como alegoria para o abuso de poder

O longa acompanha Lydia Tár, uma maestrina de reconhecimento internacional que se torna a primeira diretora musical de uma grande orquestra alemã. Em preparação para a estreia de sua nova peça a artista é obrigada a reviver alguns momentos do passado que tenta enterrar a qualquer custo para seguir com sua carreira e seu status quo.

TÁR é um filme espesso e cheio de camadas. Em uma das primeiras grandes cenas, nos 10 minutos iniciais, a personagem-título do filme participa de uma entrevista sobre suas inspirações e referências e Cate Blanchett entrega com precisão, força e ao mesmo tempo sutileza um prefácio do que será seu papel definitivo no cinema até então. Por mais que o espectador não entenda qualquer ponto do que está sendo abordado na entrevista — eu não entendo — ou não saiba muita coisa sobre teoria musical — eu não sei — ou mesmo conheça quaisquer dos nomes e obras citados por Lydia Tár, ele acaba envolvido, preso e rendido pela paixão e pelo ímpeto com que a personagem impõe suas declarações. E isso acontece em alguns outros diálogos durante o filme.

E o engenhoso diretor Todd Field aos poucos vai nos provocando com pequenos flashbacks que se confundem com delírios e vislumbres oníricos de Tár, construindo assim uma atmosfera densa e propensa ao suspense, exatamente pelo quê não se sabe (inicialmente). Tár é a famosa “personalidade forte”. Forrada com um rigor técnico usado como escudo por aqueles que precisam se impor sobre pessoas ou situações, Tár caminha entre a linha fina que separa a competência da arrogância. É mulher num local de poder (e de abuso de poder) que fora dos homens sem qualquer espaço para questionamento.

O filme traz também a discussão da arte como objeto desenhado, planejado e estudado em contrapartida à arte do sentimento, a arte objetiva. Numa das cenas definidoras do filme a professora Tár discute com um aluno que não se sente confortável em estudar e até mesmo ouvir Bach por conta de seu histórico misógino e antissemita. Tár porém induz o(s) aluno(s) a separarem o artista da obra e fazerem o famigerado recorte de época e tempo, afinal, a arte transpassa o “pessoal”. É possível passar pela arte sem passar pelos cânones? É necessário referenciá-los ainda como cânones? Tár caminha mais uma vez sobre a mesma linha fina.

E são várias linhas finas nas quais ela se equilibra no contexto familiar, profissional, acadêmico, artístico e midiático. Se o caminho para o apogeu de uma pessoa é preenchida por obstáculos, o de uma mulher lésbica não seria mais fácil. E isso a torna um alvo fácil quando qualquer falha, qualquer erro e qualquer demônio eventualmente emergir. Uma mulher em posição de destaque como Tár tem muito nas mãos e isso, por mais se que negue, afeta o ego, e a queda de gigante Tár é causada por seu ego e pelo medo de perder suas conquistas.

A busca pela perfeição, e pela plenitude nas realizações pessoal e profissional são fardos que pesados, e, ao desabarem, levam os contextos junto, levam pessoas junto e levam o progresso junto. O final de Tár é também seu ponto alto. É uma nova introdução à personagem. É um recomeço de um ciclo onde pessoas que não desistem de si e de seu propósito maior se submetem. Todd Field entrega com uma certa ironia a coroação de uma persona genial que abraça seus altos e baixos e que não se diminui frente a o que quer que apareça, doa a quem doer.

--

--

Esse Eu Vi
Esse Eu Vi

Written by Esse Eu Vi

Ávila Oliveira - Crítico de cinema desde 2012

No responses yet