Em um Bairro de Nova York (2021)

Esse Eu Vi
6 min readJun 17, 2021

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Alabanza a Jon M. Chu! Alabanza a Lin-Manuel Miranda!

Washington Heights é um bairro em Nova York com um grande contingente de imigrantes latino-americanos que por lá viveram por décadas em busca de uma fatia do tão falando sonho (norte) americano. No entanto os preços dos aluguéis nos prédios que ocupam, seja com estabelecimentos ou com moradia, estão aumentando ao passo que seus lucros não (a infame gentrificação). E é nesse contexto que somos apresentados ao Usnavi (Anthony Ramos), um jovem imigrante da República Dominicana que trabalha numa bodega e sonha com o dia que poderá ter o suficiente para voltar para sua terra-natal e viver por lá de maneira estável. E Usnavi nos guia por entre várias outras histórias de outros personagens que, assim como ele, batalham para conseguir seu espaço em Washington Heights, sem nunca deixar de levantar com orgulho sua bandeira de origem.

Eu tenho muita dificuldade em escrever sobre filmes que mexem comigo positivamente durante todo seu trajeto porque os adjetivos vão surgindo e dá vontade de soltar todos eles de maneira aleatória, e aqui está acontecendo exatamente isso, mas vamos devagar.

Em 1961 — há exatos 60 anos — o musical Amor, Sublime Amor (West Side Story), estreava pelos cinemas do mundo à fora e conquistava a aprovação de público e crítica que precisou para vencer 10 Oscar em 1962, incluindo Melhor Filme. Também baseado em uma peça, Amor, Sublime Amor é um romance inspirado em Romeu e Julieta e conta a história de um casal formado por Maria, de uma família de imigrantes porto-riquenhos, e Tony, antigo líder da gangue de descendentes de italianos na zona oeste de Nova York. Os dois grupos de imigrantes são rivais e suas gangues brigam por território. Umas das icônicas cenas dessa produção é a música “America”, onde os homens e as mulheres porto-riquenhos se confrontam de maneira divertida e bem ensaiada sobre os diferentes pontos de vista em relação aos EUA, elas cheias de esperança e apaixonadas pela “América” e eles pessimistas e desacreditados. (Amor, Sublime Amor vai ganhar uma nova versão dirigida pelo Spielberg no final desse ano).

O que Lin-Manuel Miranda fez em 2005 com a estreia da peça In the Heights (depois de longos anos de pré-produção), foi dissecar “America” e mostrar suas várias camadas, para além da dualidade “a favor” e “contra” da própria comunidade latina em relação aos EUA. O filme também passou por várias mãos até chegar à Warner que concretizou sua produção, e deveria ter estreado ano passado não fosse a desagradável surpresa da pandemia. O fato é que de 2005 pra cá pouca coisa mudou em relação a situação dos latinos nos EUA,

Musical é meu gênero favorito de filmes, então sempre que vou assistir a algum minhas expectativas já começam altas. E é incrível quando um filme onde você já conhece a história original (no caso aqui a peça que eu sei decorada) consegue surpreender. Falo isso já reiterando, é uma ADAPTAÇÃO, logo mudanças, supressões e inclusões foram feitas para que a peça imprimisse melhor como filme. E o diretor Jon M. Chu não economizou e soube transformar a peça em algo ainda maior, ainda mais vibrante e ainda mais cheio de sentimento.

O musical é todo composto por atores e atrizes bastante competentes na atuação e no canto, porém aqui, além disso, deve-se destacar o carisma de todos eles, você consegue notar que eles pareciam estar se divertindo nas gravações e isso contribui para a leveza com que o filme é transmitido. Todos os aplausos para o Anthony Ramos (talvez você se lembre dele pelo pequeno papel em Nasce uma Estrela e certamente se lembrará pela filmagem do musical Hamilton) que pegou seu primeiro grande papel em um filme e mostrou que está pronto para uma carreira maior e mais relevante daqui para frente. Anthony conduz o filme com maestria e é o alicerce para a construção dos enredos paralelos. A verdade é que todos do elenco são nomes conhecidos por seus papéis na televisão e no teatro, mas que nunca foram figurões de grandes filmes, e isso deixa a experiência ainda mais confortável na construção dos personagens. Mas também abre uma brecha para a discussão da falta de grandes nomes latinos entre os figurões de Hollywood (pretendo falar disso em outro texto).

Mas a cereja do bolo no elenco é a incrível Olga Merediz. A experiente atriz tem um grande currículo na televisão, no cinema e no teatro estadunidense, mas em poucos teve um papel de tanta relevância como In the Heights, onde ela compunha o elenco original da Broadway no mesmo papel que deu vida no filme. Cubana e crescida nos Estados Unidos, Olga canta com propriedade e paixão sua única música em todo o filme, mas emociona e comove com a verdade que coloca no número. É uma música que representa todo o filme, o confronto de gerações em relação a imigração, e o fardo de se herdar sonhos dos nossos anteriores. Se a Warner Bros. for esperta e estiver disposta a segura a campanha até o final do ano, podem esperar uma indicação certa a Melhor Atriz Coadjuvante pelos prêmios do ano que vem.

É difícil achar um filme que comece com uma abertura tão energética e que sustente essa energia durante as duas horas seguintes. Mas Em um Bairro de Nova York é implacável, o filme mantém o mesmo ritmo incansável sem parecer repetitivo em seus números, e, mais do que isso, sempre agregando à história. Jon M. Chu não se poupou em nada nas coreografias, nas cores, nos detalhes, nos cenários… é o musical mais bem coreografado e mais efusivo desde Hairspray: Em Busca da Fama (2007).

Da mesma foram em que o filme infla em alguns números musicais, ele também se retrai para as cenas mais pessoais e sentimentais, sempre fazendo questão de enquadrar cenários perfeitos e cheios de filtro de Nova York. Por horas é uma carta de amor de Nova York para a comunidade latina e por horas é uma carta de agradecimento da comunidade latina à Nova York, sim, tudo bem romantizado até nas pequenas críticas, mas se for errado se deixar levar por um espetáculo e esquecer-se dos problemas reais por duas horas eu não quero estar certo. Sem dúvida será um comfort movie para mim e vou voltar a assisti-lo por várias outras vezes à exaustão.

E o filme toca naquele lugar de memória em que (quase) todo mundo de origem latina vai se reconhecer ou reconhecer alguém da família em algum dos personagens em seus sonhos e aspirações. (Coloquei o quase ali porque se você nasceu em berço de ouro e desde pequeno vai pros EUA queimar os dólares que seus pais conseguem TALVEZ não seja lá sua realidade, mas certamente deve conhecer as histórias). O café da manhã com queijo assado e mortadela, o café com leite, os jantares fartos, a fé cristã da avó, o ânimo em falar de sua terra, a dor em falar da família que deixou e dos sofrimentos, as muitas cores, a ideia de que o trabalho dignifica, os carnavais del barrio (pra nós os pagodes de fundo de quintal) porque quaisquer que sejam os motivos, a alegria de viver apesar de tudo… mesmo não tendo nenhum personagem brasileiro ou de origem brasileira na história, você vai sair representado pelo filme. É uma celebração ao estilo latino de viver, de comemorar, de lutar, e me fez sentir orgulho de ver a bandeira do Brasil em uma cena específica, um orgulho estranho que há alguns anos não sentia, mas que sempre esteve aqui, e está só esperando a hora certa pra voltar à tona.

E tome adjetivo: é uma homenagem à comunidade latina exuberante, gigante, espirituosa e brilhante. É, sem dúvida, o filme-evento do ano, e pasmem, não é filme de herói, não é animação, não é ação, nem de franquia.

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Written by Esse Eu Vi

Ávila Oliveira - Crítico de cinema desde 2012

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