Cruella (2021)

Esse Eu Vi
4 min readMay 28, 2021

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Parece que realmente dá para ser criativo e surpreender em cima de um material conhecido.

Vou começar dizendo que eu mordi minha língua com força. Eu sou um homem que cresci à base de muito filme da Disney e sigo torcendo para que a nova leva de live action sirva para — se não outras coisas — apresentar de uma maneira decente aos jovens (ou aos que não cresceram à base de Disney) o tanto de material que já passou pelas mãos dos estúdios Disney desde a década de 1940. Porém essas novas versões não seguem uma linha de estilo como as animações clássicas seguiam, e acaba que alguns resultados saem melhor do que a encomenda e outros nem tanto. E desde o começo a ideia de filmar o passado da vilã Cruella me soava em tudo como um novo Malévola (2014), pelo fato de não ser em si uma refilmagem de algum desenho já feito, mas uma por contar uma história não contada de um personagem bastante conhecido. E fiquei feliz em ver que eu estava errado.

Como muita coisa tocada pelas animações Disney, a personagem Cruella e os 101 dálmatas são baseados no romance infantil Os Cento e um Dálmatas de 1956. E o livro, assim como os filmes (a animação de 1961 e o live action de 1996), já apresenta Cruella como uma vilã formada, fashionista rica e extravagante que tem uma paixão insana por peles de animais. Assim como Malévola utilizou-se de uma livre interpretação da vilã baseada na animação da Disney A Bela Adormecida (1959). E onde mais se poderia esperar novidades — uma vez que não existem materiais diretamente escritos sobre a vilã — acabou entregando um filme sem identidade, sem estilo, sem carisma que pouco somaram à figura da vilã ou da história já conhecida.

Então era com a cara bem torta que eu estava esperando Cruella. Mas fui surpreendido: no visual, na direção e nas atuações. É simplesmente o live action mais dedicado da Disney dos últimos anos. É deslumbrante, é cativante e bem coeso com sua proposta.

Começando pelo menos óbvio dos tópicos: figurino. Se Cruella não vencer o Oscar de Melhor Figurino no ano que vem ninguém mais ganha porque o trabalho feito pela designer Jenny Beavan — que já tem 2 Oscar de Figurino, um por Uma Janela para o Amor (1985) e outro por Mad Max: Estrada da Fúria (2015) — é fundamental para o desenvolver da história e explicitamente ajuda a construir momentos e personagens (falei explicitamente porque todo trabalho de figurino em filmes deveria cumprir esse papel, mas as vezes passa despercebido). É o punk original somado a inspirações militares, grandes adereços e com influências de grandes estilistas. O figurino é literalmente o pano de fundo de toda a história e é de encher a vista. E não é nada sutil, ele vai de uma capa de fogo até um vestido de cerca de 300 metros.

As Emmas (Stone e Thompson) estão completamente à vontade e conseguem arrancar boas risadas com seus papéis caricatos na medida certa. O elenco de apoio também é super competente e corresponde a altura das personagens principais. Some a isso uma trilha sonora espetacular e cheia de needle drops, a uma direção de arte meticulosamente pensada para compor o tom do filme e a um leque amplo de penteados e maquiagem. Você pode até não gostar do filme, mas vai reconhecer o espetáculo visual que ele é.

Meu problema com o filme é o mesmo com quase todos os outros que relativizam os “vilões” de histórias famosas — por mais carismáticas que sejam essas tentativas de humanizar personagens de “pura maldade” do imaginário infantil, em algum ponto acho que elas podem comprometer a dualidade original das histórias. É sempre uma pessoa mal compreendida que passa por problemas causado por outras pessoas mal compreendidas que também passam por problemas… então o roteiro por trás de Cruella, olhando com um microscópio a estrutura do enredo, é o mesmo do Coringa (2019), da Malévola (2014), etc. Por isso o que faz Cruella interessante não é em si o que filme conta, e sim como ele conta. Outro ponto que ainda não decidi se é positivo ou negativo é o fato de ser um “filme para a família” no sentido de não mirar exatamente um público (infantil, jovem ou adulto), então pode atingir a todos como para algumas pessoas podem sair sem qualquer efeito. Bom, de um modo geral, com o elenco certo e com uma “equipe técnica” trabalhando em consonância você consegue fingir que está tudo bem em gostar de personagens instáveis, infames e inconsequentes.

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Written by Esse Eu Vi

Ávila Oliveira - Crítico de cinema desde 2012

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