Anatomia de uma Queda (2023)

Esse Eu Vi
3 min readOct 27, 2023

--

| Dissecando uma perfeita narrativa filmada |

Sandra (Sandra Hüller) é uma romancista alemã que foi acusada de matar seu marido, Samuel (Samuel Theis) num chalé onde moravam com o filho, no interior da França. Um ano depois, no tribunal, o relacionamento deles é colocado sob um microscópio, cuidadosamente examinado e destrinchado para todo o mundo ver.

Anatomia de uma Queda sabe explorar com primor todos os recursos sensoriais possíveis numa produção audiovisual. O som aqui tem uma função importante para marcar os pontos de inflexão, seja o estrondoso sample do rapper 50 Cent repetido em loop marcando a presença incômoda e invisível de Samuel, ou seja um áudio gravado que se tornará pivô do julgamento, o que se ouve e quando se ouve aqui é tão importante quanto o que se vê. Se em algumas produções o silêncio dialoga bem com o enredo aqui o verbo é fundamental para sua imposição. Os discursos se equilibram muito bem com o posto em cena — visualmente falando — e são peças fundamentais para ajudar a dissecar o acidente-assassinato e a mente de Sandra. E o visual é responsável por dar forma principalmente ao imagético que figura o pré-morte e o julgamento. A diretora Justine Triet conduz com maestria esse excesso de detalhes e guia com facilidade e com um certo charme o estudo de caso do acontecido.

Esse é um filme marcado por atuações autoritárias de todo o elenco. Sandra Hüller é um tour de force. Ela segura o roteiro, a câmera e o público na rédea curta e domina completamente o destino do filme. Mas o jovem Milo Machado, que interpreta o filho do casal, e Antoine Reinartz que vive o advogado de acusação estão à altura da direção e do roteiro competentes. Literalmente até o cachorro está bem em cena.

Apesar de na conclusão o roteiro mostrar o veredito do julgamento, o texto está pouco interessado em apresentar uma verdade e mais empenhado em apresentar o poder da argumentação. O filme se constrói todo em cima da força que uma narrativa possui para ditar as diferentes intepretações de “verdades”, sem tomar qualquer partido. À medida que o julgamento vai se desdobrando, — e sendo harmonicamente preenchido pelos momentos fora do tribunal — e as informações e detalhes vão sendo apresentados ao público, as interpretações vão se consolidando de uma forma tal que as perspectivas não se confrontam, na verdade até se complementam, e o resultado se torna apenas a cereja do gigantesco bolo que é o desenvolvimento da trama e vontade da diretora de expor, fragmentar e pinçar todas as nuances possível da situação.

Não sou o maior fã de filmes e série jurídicos, mas não tive como não evocar o poderoso (e também francês) Saint Omer, de 2022. Existe algo em mulheres de palavras fortes e olhar incisivo numa posição onde se esperaria fragilidade e vulnerabilidade que torna ambos os longas pungentes e atraentes.

--

--

Esse Eu Vi
Esse Eu Vi

Written by Esse Eu Vi

Ávila Oliveira - Crítico de cinema desde 2012

No responses yet